Relembrar a estrutura de histórias infantis nos traz de volta momentos em que o importante era não sentir medo antes de dormir. Vera Guilherme nos mostra uma das origens do temer, onde a fixação no lobo mau nos leva a pesadelos. Os pesadelos da autora ocorrem no dia-a-dia. Acordada. Enquanto cientista social, é perspicaz analista do cotidiano e, a partir daí, passou a desconfiar do ilusório véu de segurança. Deu-se conta: o medo é constitutivo e uma cultura fundada no temor é apenas uma forma de propagar a obsessão pela inatingível tranquilidade. Autofagismo. Percebeu: nosso sistema penal reproduz o medo e, caso queira deslocar esta estrutura, deverá fundar-se em outra lógica, com outras condições. Para além das ideias desenvolvidas pelo senso comum teórico e, não só isso, na considerada vanguarda da crítica, a autora nos traz riquíssima aproximação da temática com o abolicionismo penal. Transcende, portanto, à dualidade usuário X traficante para mostrar que a situação é muito mais complexa e deve ser tratada sem hipocrisias. Não basta olharmos para a descriminalização das condutas referentes ao usuário. É necessário irmos além e, no mínimo, considerarmos também a possibilidade de descriminalizarmos também as demais. Sob pena de a chamada seletividade penal ser considerada apenas uma abstração teórica, incentivada, na dualidade, pelos próprios (ditos) teóricos críticos. Fundamental repensarmos as projeções punitivas para produzirmos profundos impactos desencarcerizantes. Para não fugirmos do medo e o encararmos de frente, nos dando a oportunidade de entendê-lo. Para percebermos o pesadelo que é o fracasso histórico de punições e reconhecermos que a utopia não está no abolicionismo, mas no próprio sistema penal (oni)presente.